O RÉU DO SISTEMA E A JUSTIÇA SELETIVA

Texto colaborativo: A.Tiago e Leandro Barreto

O grupo de Rap feminino Livre Ameça que já foi vencedor do Prêmio Hutuz, lançou o vídeo clipe da música Réu do sistema. A filmagem traz elementos da violência cotidiana das grandes cidades e relata a vida nas periferias onde o sistema impõe sua regras. Imagens de manifestações nas ruas, conflitos urbanos, favelas, históricos de guerras civis, resquícios da ditadura militar e o relato da cantora Lunna Rabetti sobre a ação impetuosa do sistema contra os menos favorecidos. A música faz uma analise sobre o processo de sentenciamento de irmãos e irmãs que adentram na vida do crime e se tornam réus do sistema.


Nascemos, vivemos, crescemos nas favelas situadas dos extremos das
Grandes cidades periféricas mas a guerra é continua, imploramos a paz

A mensagem do vídeo clipe acaba por suscitar algumas questões sobre a condenação na periferia. Isto é, quem é o réu para o sistema de verdade? E qual a transgressão e se deve haver uma, para sermos considerados acusados e culpados pelo sistema? A resposta para essa pergunta depende de alguns critérios. A verdade é que resultante da cor da pele, área geográfica de moradia, gênero, dígitos na conta bancária ou a herança genética carregada na identidade, podemos passar de cidadãos comuns à potenciais terroristas e vice-versa. Ainda que nunca tenha infligido uma única lei prevista no código penal de 1940.   

Democracia aqui na qual não existe e você sabe disso né? 
Se não sabe, saiba, pois eu sei que é, preto é parado, pobre condenado, fica ligeira 

Entretanto, para a justiça brasileira, quem deve ser considerado réu?

O réu segundo o ordenamento jurídico


A Constituição da Republica Federativa do Brasil de 1988 é a lei superior em nosso país, logo todas as outras leis infraconstitucionais do ordenamento jurídico devem estar em harmonia a Constituição Federal.
O instituto da Presunção de Inocência é um principio basilar constitucional, porém, esse principio muitas vezes não é respeitado, sobre tudo se o réu for pobre e periférico.  A Lei 7.960 de 21 de dezembro de 1989, regularizada a Prisão Temporária, no período de investigações criminais, ou seja, antes de ter inicio o processo criminal, trata-se de uma das modalidades de prisões cautelares, vejamos alguns artigos de nosso ordenamento,

 CF, Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

 LXI - ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei;

LVII: Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”

Vejamos o que estabelece a lei que regula a prisão temporária

Art. 1° Caberá prisão temporária
II - quando o indicado não tiver residência fixa ou não fornecer elementos necessários ao esclarecimento de sua identidade;

De pronto é perceptível a dicotomia entre a lei que regula a Prisão Temporária e nossa CF, logo é possível afirmar que estamos diante de uma lei materialmente inconstitucional, ou seja, seu conteúdo não esta de acordo com a CF, logo deveria ser afastado de nosso ordenamento jurídico, em outras palavras, não deveria ser valido, pois já nasceu viciado.
O instituto da prisão temporária desrespeita os ditames da Constituição Federal, permitindo a prisão do individuo durante as investigações policiais pelo simples fato de não ter residência fixa ou documentos,  invertendo princípio da presunção de inocência por presunção de culpa, o simples fato do indivíduo não ter documentos ou residência fixa é motivo para sua prisão, ainda que temporária.

Nas quebradas aos meus iguais, o que vejo, são magistrados, juízes, promotores, policiais e “agentes da lei” aplicando os princípios inventados por eles, resquícios de ditadura, onde o que vale é a presunção da culpa, onde indivíduos são processados condenados e executados sem direito ao contraditório e ampla defesa, onde o poder paralelo deixa claro o quanto o direito penal em nosso pais é seletivo, se for pobre e periférico. 

Pesos e medidas na balança da justiça


Falemos então dos potenciais terroristas que são os réus que o sistema optou por combater.

Um evidente caso é o do perigosíssimo réu Diogo Braga, que foi detido por carregar um instrumento altamente nocivo chamado de Pinho sol nas manifestações de 2013. Diego foi condenado a 5 anos de prisão e teve seu pedido de absolvição rejeitado pelo TJ-RJ. Vale lembrar que o rapaz negro foi o único preso na ocasião das aclamações públicas daquele ano.

A arte também pode ser considerada criminosa, principalmente quando fere o âmago da corporação estatal treinada para defender a burguesia. Ocorreu na cidade de Santos, a peça   Blitz – O Império que Nunca Dorme, faz uma critica ao sistema autoritário, onde a policia militar executa em suas ações. E pra variar, a vida imitou a arte e o ator que encenava a apresentação foi autuado e preso em flagrante. Seu crime hediondo? Representar a vida real, na arte.

Até trabalhar pode ser considerado um ato facínora para o braço armado do Estado. Quem não se lembra da vendedora ambulante que foi agredida por PMs na manifestação contra o governo de Michel temer, ou do pai que foi acusado de roubo, após comprar um par de tênis para os filhos, à vista,  enfrentou a acusação publicamente defendendo os filhos. Falemos também da execução sumária feita pela PM nos 5 jovens desarmados do Palio branco no RJ em 2015, quando o veiculo foi alvejado por 111 tiros, ou do último caso envolvendo outros 5 jovens, entre eles um cadeirante em Mogi das Cruzes em SP, que foram encontrados em estado de putrefação.

Esse extermínio declarado do Estado brasileiro se transfigura em pesquisas internacionais que mostram que a policia brasileira é a mais assassina do mundo. A policia brasileira mata em 6 dias, o que a britânica leva para executar em 25 anos. Executamos mais até do que países com guerras declaradas. Matamos mais do que nações onde a pena de morte é instituída pelo governo. Isso só mostra que a pena capital brasileira é feita de forma velada e não oficial, mas mesmo assim, mata mais do que qualquer maquinário bélico contemporâneo.

Até quando o defendemos nosso direito, os interesses burgueses travestidos de Lei são usados para açoitar nosso povo. PMs invadem escolas e agridem estudantes que exercem o seu direito de manifestação à favor da escola pública e contra reformas autoritárias feitas pelo governo. A policia brasileira também é especialista em atacar movimentos sociais que protestam por terra e moradia para quem não tem.

O filósofo Max Weber relatou que o Estado tem o "uso legítimo da força física dentro de um determinado território". O Estado brasileiro faz questão de empregar essa força contra a parcela mais pobre da sua população.

Acerca dessas decisões judiciais podemos expor alguns fatos que no mínimo trarão contradições, para não falar injustiças descaradas. Suponhamos que um cidadão jovem esteja carregando poucas gramas de entorpecentes consigo,  ao ser abordado pela policia, dependendo da cor da pele, estado social ou poder aquisitivo, ele pode ser considerado um relés usuário ou um traficante em potencial. Tudo vai alternar considerando os requisitos citados. Agora, pense se esse mesmo jovem fosse proprietário de uma Kombi e o veiculo fosse flagrado com 450 quilos de pasta base de cocaína. Qual seria a pena? Trocando os papéis e saindo do campo da suposição, temos o caso do senador de MG Zezé Perrela que teve o helicóptero da sua família apreendido com a mesma quantidade da substância ilícita no ES e milagrosamente não foi achada nenhuma evidência da participação do senador, tao pouco do seu filho que era dono do helicóptero, a não ser é claro, que o veiculo era de propriedade deles. Logicamente que todo proprietário de um veiculo desse porte, o empresta para seus funcionários e não pergunta para qual propósito ele será usado (SIC). Funcionários esses que após serem presos e condenados, já usufruem da sua liberdade. Mas não para por ai, o herdeiro do senador, seu filho Gustavo Perrela, além de não ser considerado associado ao caso, ainda ganhou um cargo no governo no de Michel Temer.

Outro exemplo da contradição jurídica é o caso do acidente envolvendo o filho mais velho do magnata Eike Batista, em 2012 Thor dirigia sua Mercedes-Benz SLR McLaren prata, placa EIK-0063, avaliada em R$ 3 milhões, na Rodovia Washington Luís (BR-040), quando atropelou e matou o ajudante de caminhoneiro Wanderson dos Santos, de 30 anos. O laudo apontou a velocidade de 135km/h no momento do acidente, muito acima do permitido. Com isso, alguns apontamentos devem ser feitos. Thor Batista já tinha um histórico negativo de conduta no trânsito com direito à inúmeras multas por excesso de velocidade. Outro ponto é a decisão judicial que foi mudada e com isso, feita a absolvição. Vários foram as manobras nesse caso, mas no fim, o filho homônimo do deus nórdico mitológico foi corrigido com penas alternativas, pagamento de fiança e um "castigo" de ficar sem dirigir por um determinado tempo.

Em 1992 aconteceu o trágico Massacre do Carandiru, 111 presos foram mortos pela policia militar do Estado de São Paulo. Somente 2016 teve uma determinação onde, o Tribunal de Justiça anulou a decisão que condenava os soldados da PM sobre o assassinato ocorridos no presidio. Certamente esse crime jamais será julgado com justiça. Mas a título de defesa o então governador na época Luiz Antonio Fleury (filho de Sergio Fleury, delegado do DOPS na ditadura militar), o comandante da operação Ubiratan Guimarães e o Secretário de segurança Pública, Pedro Franco de Campos deveriam ser os principais responsabilizados. Mas, a seleção da justiça mostrou-se falha novamente. Fleury anos depois afirmou "Quem não reagiu está vivo". E o coronel Ubiratan ostentou o estigma numérico que simbolizou a sua gestão, e chegou a se candidatar e eleger-se deputado federal com o indecoroso número 14.111

Finalizando, podemos citar os casos que envolvem os legisladores e os que executam as leis no nosso país. Contudo, seria inviável expor os abundantes e vergonhosos casos de impunidades que ocorrem, ocorreram e ocorrerão no Brasil quase que diariamente ao longo dos séculos. Perdão do Caixa 2 e outros histórias vergonhosas. Vide essa matéria sobre o assunto. Melhor que isso é fazer um pequeno exercício de memória e se perguntar. Independente do partido, sigla, aliança ou espectro ideológico. Qual político temos a certeza que irá pagar pelos seus crimes, ou ser impedido de participar  da vida pública? Qual parlamentar que ao lesar milhões de cidadãos com desvios de verbas, arrecadação de propinas, evasão de divisas ou estelionato eleitoral, vai cumprir pena em algum presidio de segurança máxima? Logicamente que nenhum deles...

Prefira justiça antes do perdão 

A frase escolhida para ser o nome do último álbum do grupo A286, é apropriada para dialogar sobre a questão da culpabilidade imputada aos menos favorecidos.

Se houvesse justiça de verdade em nosso país, se os verdadeiros bandidos que vestem terno e gravata pagassem pelas suas transgressões aos cofre públicos. Talvez, não precisaríamos de tantos processos judiciais contra moradores de periferias. Quantas violações de direitos foram arquitetadas através de uma caneta por algum político ou magistrado? Quantos pobres poderiam ter se desviado do caminho da criminalidade, se a verba da educação, saúde, segurança, lazer, cultura fossem investidos de maneira honesta? Quantos homens e mulheres pobres tiveram que optar pelo caminho errado, pois não lhe foi facultado outra opção? Se a justiça tivesse sido feita, não precisaria do perdão.

O que se postula nesse texto não é nada mais do que o aguçamento da crítica que se deva fazer sobre os pesos e medidas que temos atualmente. Quando retratamos que as industrias e plantações de drogas não estão no morro, não queremos de maneira nenhuma legitimar as atuações do tráfico nos bairros periféricos. Sabemos muito bem o quão nocivo e prejudicial é para nossa juventude o consumo e envolvimento com substâncias químicas. Sabemos claramente quantos jovens abandonam as escolas, tolhem suas famílias, são presos e mortos pela policia, tudo por causa da droga. Porém, a culpa deles não se assemelha nem de longe com os  potentados asquerosos que fabricam e lucram com as tragédias acometidas nas periferias.

O que esta exposto nessas linhas é a clara evidência de uma justiça seletiva, que contempla o perdão aos homens ricos e poderosos. E condena, massacra e humilha pessoas pobres e periféricas. É a obviedade que tanto nos assola, que parece não existir nos discursos de quem tem a possibilidade de mudar isso. Toda desigualdade social é fruto das decisões que são feitas por pessoas que não compartilham de sentimentos por pessoas que vivem à margem da sociedade.

Têmis, a divindade grega que não enxerga e deve ser guiada por relatos orais para se chegar a uma decisão justa, ilustra a imagem da justiça carregando uma espada e uma balança não pode ser aplicada as leis brasileiras. A justiça tupiniquim tem seu aparelho ocular funcionando muito bem, e sabe muito bem separar os pobres e ricos, e aqueles que merecem o peso do seu martelo e a fúria da sua espada.

* Atualizações

Esse artigo foi escrito em novembro de 2016, contudo, a injustiça no pais carnavalesco é desenfreada e a cada dia consegue multiplicar-se em histórias que são quase impossíveis de se acreditar. Visando isso, sempre que ocorrer uma dessas peripécias tupiniquins, será adicionado ao artigo presente, o link da nais nova balburdia inventada pela nossa "Justiça" que nunca foi cega.


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