A 13° EMENDA, O ESTIGMA RACIAL E O RAP DE CONDOMINIO

O famoso documentário 13° emenda da diretora Ava DuVernay, que fala sobre o processo de encarceramento em massa nos EUA desde à época da emancipação dos negros escravizados até os nossos dias, pode trazer uma profunda reflexão sobre os parâmetros a quem a lei se aplica e até onde vai o “privilégio” de alguns para expor suas opiniões e banalizar a causa.

O país da estátua da liberdade

A contextualização do filme traz uma série de números que exemplificam a contradição do país da liberdade. A população estadunidense representa 5% do total de pessoas do mundo. Mas em relação aos seus encarcerados, esse número passa a 25% dos que vivem sob o mesmo regime em escala mundial.  Isto é, o país que reivindica ser a terra da liberdade e democracia é o que tem mais pessoas vivendo em prisões em todo o planeta. E isso não vem de hoje.


A 13° emenda e a história

Todo colapso moderno está intrínseco com o passado, e se no Brasil a escravidão institui uma desigualdade abissal, no irmão do Norte a coisa não foi diferente. Em síntese, a guerra da secessão (1863 – 1865) travada entre o norte industrial e o sul escravagista carregava intenções políticas e econômicas adversas.  Enquanto o Sul queria a manutenção do sistema econômico escravocrata já que seu desenvolvimento industrial ainda era fraco, o Norte por sua vez visava o fim da escravidão, não por questões humanitárias ou ideológicas, mas sim para aumentar a força de trabalho e consumo de trabalhados livres e assalariados. No final, o norte vence a guerra, em grande parte pela ajuda dos negros que lutaram a seu favor com a intenção de tornarem-se livres após o episódio. E em 1965 passa a vigorar em todo território americano, inclusive nos confederados que foram anexados após a guerra, a lei de emancipação, que já tinha sido aprovada em 1963 em meio ao conflito. A 13° emenda diz:
 "Não haverá, nos Estados Unidos ou em qualquer lugar sujeito a sua jurisdição, nem escravidão, nem trabalhos forçados, salvo como punição de um crime pelo qual o réu tenha sido devidamente condenado"
Assim como a Lei áurea não contemplou a liberdade completa dos negros brasileiros, a Lei de emancipação dos EUA também deixou brechas. A exceção para se manter pessoas escravizadas sob o pretexto de terem cometido algum crime, foi incubadora de uma série de injustiças contra os afro-americanos. Pessoas começaram a ser presas por crimes ínfimos, ou por falsas acusações de roubos ou outros delitos. Criaram a "Lei da vadiagem" que punia negros que ficavam ociosos ou estavam vagando pelas ruas sem trabalho. Essa lei também teve sua versão brasileira que foi promulgada em 1941 no governo ditatorial de Getúlio Vargas.

A partir de todo esse contexto histórico os negros foram estigmatizados como infratores da lei, e encarcerados massificadamente. Pela lei não mais acorrentavam seus pés e os tinham como propriedade, contudo, agora podiam algemar seus pulsos e privar-lhes a liberdade como outrora. Essa ilustração negativa foi cinematografada em 1915 com o filme 'O nascimento de uma nação', que foi exibido na casa branca, e reforçava o imaginário de que os negros são violentos, animalescos e propensos à criminalidade. Por isso, tinham que ser controlados. Essa série de eventos culminou em violentas ações contra negros promovidas pela Ku Klux Klan e seus adeptos.



Resistência e violência 

O histórico de luta dos negros americanos após os anos 50 tem personagens marcantes. Homens e mulheres que desafiaram as leis de Jim Crow, e sofreram violência e prisões em defesa dos direitos civis. Rosa Parks, Malcolm X, Luther King, Ângela Davis, o Partido dos Panteras Negras, entre outros deram outro significado à prisão. Nesse momento uma pessoa negra presa não era mais sinônimo de vergonha, mas sim de resistência. Á partir da década de 60 o governo norte-americano resolveu tomar medidas mais severas. Diversas prisões, assassinatos, julgamentos fraudulentos, fragmentação dos movimentos, e em 1970 no governo Nixon é declarada a 'Guerra contra as drogas'. Essa guerra fantasiada tinha por objetivo a prisão de pessoas que portassem drogas. A maconha era associada ao Hippies que eram mais tolerados, e a heroína e cocaína aos negros que recebiam sentenças mais severas.



Nos anos 80 o crack era uma droga nova, altamente viciante e de baixo valor. Não demorou para se tornar o inimigo numero 1 dos EUA. Observando o histórico econômico, os bairros negros eram os mais pobres, e consequentemente ali eram consumidas substancias mais baratas. Foi ai que se associou o negro ao crack, e a tolerância zero para usuários de cocaína em forma de crack. A partir dai a quantidade de presos nos EUA aumentou vertiginosamente chegando ao número que conhecemos hoje que é de  2,24 milhões de pessoas presas.

Mas o que o Rap de com isso?

Não é novidade nenhuma que muitos grupos sempre levantaram a bandeira da legalização das drogas e assumiam que eram consumidores de substâncias que não são legais juridicamente. O discurso acerca da droga, principalmente da maconha, era emitido em face de que ela não era o"inimigo número 1 da favela" ou de que as plantações de droga não estavam no morro". Contudo, mesmo reivindicando a tolerância ao uso ou mesmo a apologia, os grupos não se furtavam de expressar a problemática em ser adepto de tais substâncias. Peguemos dois grupos de exemplo: De Menos Crime e Planet Hemp.

Na polêmica e famosa música 'Fogo na bomba', o grupo De Menos Crime faz uma clara referência ao uso da maconha, e mostram o seu uso. Contudo, não é omitido os riscos que existem em utilizar a substância. O abuso em algumas circunstancias, e o pior que é a violência policial depositada nos bairros pobres. Não importa se você é usuário ou traficante, a lente da policia só enxerga marginais.

50 Pms nas ruas prontos para embaçar;
É, um gambé folgado pode complicar;
Lhe forjar um 12 e lhe fazer assinar;
[...]
Com certeza eles vão, eles vão enquadrar;
Pelo falso papelote eles vão te matar;
DMC - Fogo na bomba

Já na simbólica letra 'Legalize Já', o grupo Planet Hemp faz apontamentos sobre quais os verdadeiros efeitos do uso da maconha, e os compara com outras drogas que são vendidas licitamente. Fica evidente o questionamento sobre a marginalização do usuário de cannabis, e a aceitação social do álcool e do cigarro.

O álcool mata bancado pelo código penal
Onde quem fuma maconha é que é o marginal
[...]
Aí provoca um tráfico que te mata em um segundo
A polícia de um lado e o usuário do outro
Eles vivem numa boa e o povo no esgoto
E se diga não às drogas, mas saiba o que está dizendo
Planet Hemp - Legalize Já
Todos sabemos que essa guerra contra as drogas só beneficia os verdadeiros traficantes donos de helicópteros e fazendas, e extermina a juventude preta e periférica que vislumbra na criminalidade um meio de ascensão social. O dialogo à respeito da legalização e descriminalização já passou da hora de acontecer. Não é fazer julgamento moral sobre as drogas, mesmo sabendo que como exemplificou o rapper Eduardo, elas "adiam a nossa revolução". Mesmo assim, não cabe a ninguém decidir o que cada um quer fazer com seu corpo e mente A questão aqui é outra.

Quantos exemplos de Rafael Braga que temos na periferia? Jovens negros que foram presos injustamente por portar algumas gramas de maconha e ser condenados a mais de 11 anos de prisão por tráfico, simplesmente pela cor da sua pele. Comparado ao filho da juíza que foi encontrado com 130 quilos de maconha e solto após 3 meses de detenção.

Hoje algumas letras que abordam o tema das drogas, se vangloriavam de estar exportando cocaína e levando uma vida de gangster através desse mercado, e dão a entender que quem rodou nessa vida é porque é vacilão. Pra essa playboyzada do Rap é fácil fazer clipe glamourizando o consumo excessivo de álcool e drogas em suas mansões em bairros nobres, dirigindo carros esportivos e rodeado por 95% dos amiguinhos que são brancos. Quero ver mostrar as quebradas onde a maioria são pretos e pobres, e a polícia extermina pela cor da pele e região geográfica, mesmo que esses "estejam limpos".

O estigma social e racial que acompanha a favela não é invisível. Infelizmente os tempos passaram, mas a associação da criminalidade ainda tem cor e localização. Não são todos que podem se dar ao luxo de manifestar as suas opiniões e gostos sem serem condenados.

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