SAÚDE MENTAL PERIFÉRICA E A GUERRA NÃO DECLARADA

Escrito por: Thiago Augusto Pereira Malaquias
Formado em Psicologia pela UFPB, 
Militante Hip Hop,
Educador Social. 

Setembro está chegando ao fim, e diferentemente do início do mês quase não escutamos falar em “Setembro Amarelo”, que é uma campanha que cumpre um importante papel educativo e preventivo, quebrando o tabu ao colocar em pauta e debater abertamente na sociedade sobre suicídio. Nesse debate, invariavelmente, psicólogos, psiquiatras e psicanalistas são convocados pelos veículos de comunicação e por toda sociedade, como supostos detentores dos mistérios obscuros da mente, como guardiões da saúde mental.


Passada a efervescência do momento inicial, quando os meios de comunicação bombardearam com informações por vezes questionáveis, talvez agora seja um momento propício para apontar algumas importantes observações acerca de noções alienadas e alienantes sobre saúde mental que circulam na sociedade, e que se reproduzem e se fortificam a cada ano. Essa noção que os saberes ‘Psi’ mais tradicionais sustentam pode ser compreendida como liberal. Pois entende o Ser Humano como “individuo”, ou seja, individualmente, desprendido de seu contexto e de suas relações sociais; o Ser Humano como “autossuficiente”, quer dizer, tudo depende desse indivíduo, só do indivíduo. 

Por outro lado, se pegarmos exemplos sobre a noção de saúde mental presentes em algumas letras de RAP, logo percebemos diferenças. Eduardo Taddeo, no som “Manicômio Judiciário”, deixa muito evidente a relação entre as opressões estruturais do sistema capitalista com as formas de sofrimento psíquicos. Nessa música o rapper versa: “Sou esquizofrênico que ouve a voz não ouvida, abafada por sirenes, G3, garrafinha”. Quer dizer que esses fatos violentos deixam marcas nas pessoas e desencadeiam sintomas e sofrimentos. São vários trechos e diversas associações entre violência e sofrimento psíquico presentes na letra. Mas basta o refrão: “Nem todos comprimidos e choques eletroconvulsivos apagam da minha mente o sistemático morticínio”. Essa noção do Eduardo contradiz a noção liberal, na medida que traz o contexto social como plano de fundo do sofrimento psíquico. Inclusive, a música nos lembra o último capítulo da obra Os condenados da terra (1968), do Frantz Fanon, onde o autor que forneceu bases sólidas para a antipsiquiatria apresenta quadros clínicos de pessoas acometidas por transtornos psiquiátricos em contexto de guerra.

Frantz Fanon

Dito isso, como as redes sociais têm se caracterizado cada vez mais como um ambiente onde as pessoas se informam e formam suas opiniões sobre o que é saúde mental, para discutir de modo breve sobre essas diferentes noções, foram selecionadas três publicações encontradas na página oficial do “Facebook App”. As publicações juntas somaram mais de 250 mil curtidas, 3 mil comentários e 9 mil compartilhamentos. Assim, qualquer pessoa com acesso a rede social poderia - e pode - ser bombardeada por uma publicidade sobre saúde mental que, conforme buscarei argumentar, mais prejudica do que ajuda nós periféricos.

“Falta de saúde mental também é falta de diálogo". 

Para o psicólogo libertário Ignácio Martin-Baró (1990), “la salud mental constituye una dimensión de las relaciones entre las personas y grupos, más que un estado individual, aunque esa dimensión se enraíce de manera diferente en el organismo de cada uno de los individuos involucrados en esas relaciones, produciendo diversas manifestaciones”. Assim, mesmo que cada pessoa sofra de forma singular, as questões que geram tais sofrimentos possuem a mesma origem: as relações sociais determinas pela formação social, no caso, capitalista. Então o mero diálogo individualizado é pouco para superar uma sociedade que cria um ideal de Ser Humano eurocêntrico, destoante dos brasileiros. Nossa dor e uma denúncia das mazelas sociais. 

A afirmativa do post que faz todo sentido, o diálogo e basal para a produção de saúde mental, mas ela precisa ser problematizada. Não adianta dialogar com um profissional e não ter uma condição de vida adequada; não adianta conversar e ser superexplorado em trabalhos precarizados; não adianta pagar psicoterapia por 12 meses e não ter um salário que possibilite fazer uma viagem nas férias; não adianta falar das repressões vivenciadas entre quatro paredes e ter medo de andar nas ruas do próprio bairro; não adianta achar que saúde mental é uma questão individual se a realidade que compartilhamos é que produz o sofrimento. Nesse contexto, as pessoas mais exploradas precisam trabalhar para sobreviver, têm outras prioridades irremediáveis: bater o ponto no trabalho é mais urgente que dialogar sobre problemas que somente uma sociedade justa, um bom trabalho, um bom salário e relações saudáveis poderiam sanar. A pergunta é: com quem é esse diálogo? Pois ele só vai adquirir potência transformadora da realidade social se for entre periféricos sofredores visando combater as mazelas sociais.

Martin-Baró

"Eu estou bem porque faço terapia".

Em um livro intitulado As artimanhas da Exclusão (2001), a autora Bader Sawaia formulou um conceito que convém citar: sofrimento “ético-político”. Se trata de uma modalidade de sofrimento estritamente relacionada com a condição de subalternidade, de inferiorização e de depreciação gerada pela desigualdade social inerente ao capitalismo. A mãe e o pai com depressão por perderem dois dos três filhos nas mãos da polícia, quando procuram um psicólogo nos mostram as raízes estruturais do sofrimento. A pessoa que frequenta psicólogos para poder falar de sua rotina deveria pensar na qualidade das relações interpessoais que tem disponível em seu meio social; a que precisa pagar para ser escutada pode se questionar a razão de não ser escutada pelos outros; a que quer liberdade pra falar de sua intimidade revela que é reprimida pra falar com quem lhe rodeia; quem precisa de atenção e acolhimento, quase sempre não as recebe no cotidiano. 

Romantizar a psicoterapia é uma estratégia mercadológica. Na realidade, na grande maioria das ocasiões, quem está na terapia de alguma forma não está bem. Afinal, quem se sente livre, que acorda feliz, bem alimentado, bem consigo mesmo, amado, sem dívidas e diz: "que dia lindo, ótimo pra fazer terapia, estou doido pra relatar minha adoração pela vida para meu psicólogo". Se os problemas que nos causam sofrimento ético-político são de ordem social, o que vai nos trazer bem-estar psíquico são melhores condições objetivas de vida e liberdade para desenvolvermos nossas potencialidades. Não se conquista isso deitado no divã falando da infância. Portanto, nossa atenção deve estar voltada para esse modelo de sociabilidade que deteriora os laços afetivos entre as pessoas.

Bader Sawaia

“É uma fase ruim, e a terapia pode me ajudar a passar por isso”. 

Esse tipo de publicidade alienante mascara os aspectos sociais determinantes no processo saúde-adoecimento. Pois se entendemos que nossos sofrimentos ético-políticos têm origem nas relações sociais produzidas pela formação social capitalista; e se também entendemos que a terapia pode ser importante em alguns casos, mas que ela não é a solução para os problemas estruturais, não podemos esperar que a felicidade das pessoas dependa de serviço oferecido por um profissional. Devemos nos perguntar qual a origem dessa “fase ruim”, se é o termino de um namoro, ou seis meses de desemprego com filho para criar? Sem querer igualar as prioridades, ambos casos podem ser problematizados. Com isso, se nosso sofrimento ético-político vem da realidade social, quer dizer que ninguém deveria ser silenciado na privacidade hermética de um consultório.

Um psicólogo só é necessário quando nossos vínculos sociais estão esfacelados, quando a lógica da privacidade nos mantém isolados e a da competitividade nos torna rivais, impedindo relações autênticas, solidarias e implicadas com a vida um dos outros. Terapia é bobagem? Não, é importante na realidade social que vivemos. Porém, ela não é uma solução, ela é um paliativo, um placebo. A produção das formas de sofrimento é estrutural e deve ser combatida política, econômica, ideológica e coletivamente, não obstante a psicoterapia não pode ser utilizada como resposta individualizada para uma questão social.

Mas como enfrentar esse sistema e produzir saúde mental entre nós? 

O psicólogos responsáveis pela germinação da vertente afrocentrada da psicologia, Wade Nobles e Nain Akbar, afirmam que a escravidão e o mito da democracia racial deixou distorções na personalidade dos afrobrasileiros, como a busca pela branquitude ou a “desordem do ego alienado”, aquela em que a pessoa age contrário a sua própria sobrevivência (seria o caso de pretos/as e pardos/as que lutam contra pautas do movimento negro). Para Nobles (2009), essa falta de identificação causada pela desafricanização “limita nossa capacidade de curar a nós mesmos e compreender nossa conexão humana, assim como limita nossa capacidade de realmente cuidar uns dos outros e curar uns aos outros”. Nesse sentido, ele sugere o resgate cosmológico da noção africana da palavra “Eu”, indagando sobre a necessidade de se transformar o “Eu” unitário em um “Eu ampliado”. Ou seja, um eu que significa nós. E é nessa direção que devemos caminhar: nos aquilombar, nos cuidar e combater coletivamente os males da estrutura social capitalista, causadora de tantos sofrimentos ético-políticos em nós, nossos irmãos e irmãs da periferia.

Wade Nobles

Diante de tudo que foi exposto, entender que “la salud mental de un pueblo se encuentra en la existencia de unas relaciones humanizadoras” (Martín-Baró, 1990), assimilar que não se trata de algo individual, mas uma produção coletiva nos faz perceber que no Brasil quase não há produção de saúde, pelo caráter desumanizador da opressão, apenas de sofrimento. Em resumo: só o diálogo é pouco, pois o problema é estrutural; o bem-estar individual e coletivo não está nas mãos de profissionais ‘Psis’, mas nas condições de vida e relações sociais; e, fazer terapia ajuda individualmente, mas é paliativo e não afeta a raiz do problema. Por isso devemos prestar atenção nas noções ou teorias que sustentam os discursos sobre saúde mental que circulam no cotidiano e nas redes sociais, elas podem representar uma mera ideologia burguesa quando ocultam questões estruturais.

Uma sociedade que cria mecanismos para impedir nosso desenvolvimento pleno, que lucra como o medo e com a violência, jamais será capaz de promover saúde mental. Dessa forma, nossa luta anticapitalista (que é antirracista, antipatriarcal e anticolonial) pode vir a ser instrumento para produzir saúde hoje. Para lutarmos contra a colonização dos nossos territórios, saberes, corpos e mentes. Uma sociedade menos adoecedora requer a superação da estrutura de classes e a exploração dos homens pelos homens, ao passo de que cria condições para que cada pessoa possa desenvolver livremente suas potencialidades, de setembro a setembro sem placebo. 

Referências:

Carlos Eduardo Taddeo, Manicômio Judiciário, 2014. https://www.youtube.com/watch?v=3iWUU9RJTdk 

Fanon, F. (1968). Os Condenados da Terra. Rio de Janeiro, RJ: Editora Civilização Brasileira.

Martín-Baró, I. (1990). Guerra y salud mental. In I. Martín-Baró (Org.), Psicología social de la guerra: trauma y terapia (pp.23-40). San Salvador: UCA Editores.

Nobles, W. (2009). Sakhu Sheti: retomando e reapropriando um foco psicológico afrocentrado. In: Nascimento, E. (Org.) Afrocentricidade: uma abordagem epistemológica inovadora. São Paulo: Selo Negro, p. 277-298. 

Sawaia, B. (org). (2001). As artimanhas da exclusão: análise psicossocial e ética da desigualdade social. Petrópolis: Vozes. 3ºed.


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