A TELEVISÃO NÃO É LUGAR PARA O RAP

Nos anos 90 era segmenta a ideia geral de que os artistas do Hip Hop sejam eles homens ou mulheres, não poderiam aparecer na televisão. Caso contrário ganhariam a  alcunha de 'vendidos'. Este discursivo foi amplamente reforçado por grupos que reiteravam sistematicamente a não vontade em aparecer nos meios de comunicações visuais, pois lá, seriam manipulados, editados e teriam suas ideologias corrompidas. Tocar na rádio era sinal de sucesso, ideologia e resistência. Já a TV era vista como o "Diabo de antena", que ao cooptar um integrante do Hip Hop, passava à transforma-lo em massa de manobra e descartá-lo.

A verdade é que muitos desses artistas eram bem jovens na época, e era consenso coletivo que ninguém do meio podia ir à TV. Essa ideia era tão reforçada, que muitos nem sabiam o porquê de não poder aparecer e apenas reproduziam esse discurso. Passado os anos, esses mesmos artistas ficaram mais experientes, e observaram que a aparição em programas de TV podia ser uma grande chance de mostrar seus trabalhos e ideias. Tanto é, que muitos desses artistas que resistiam ir na mídia, posteriormente participaram de alguns programas, gerando muita polêmica.


A grande questão não é aparecer na televisão, mas sim, o que o Rap está fazendo lá. Abaixo seguem algumas exibições que provam que o Rap pode aparecer na TV e ainda assim, continuar sendo contundente, sério e resistente.

O polêmico rapper MV Bill, que já teve sua música 'Soldado do morro' censurado pela justiça, já figurou inúmeras vezes em programas televisivos. A maioria dessas participações trazem discursos politizados e carregados de ideologia. Um exemplo disso foi sua participação no programa 'Altas Horas', onde ele discursou em cadeia nacional sobre a questão das politicas afirmativas.


Continuando com MV Bill, é impossível não citar  a emblemática participação no também programa global 'Domingão do Faustão', onde o cantor ao apresentar a música 'Só Deus pode me julgar', que faz inúmeras criticas  ao sistema embranquecedor da mídia em novelas e programas de auditório, foi copiosamente Tolhido de continuar a música. Na parte em que a letra fala das paquitas loiras e da "Novela de escravo a emissora gosta, ver os pretos chibatados pelas costas" o som foi "misteriosamente" cortado, mas nada que impedisse o Mensageiro da Verdade de continuar.


Outro rapper que apesar das várias criticas que recebe, sempre que tem a chance de falar na televisão e problematizar as causas sociais, é o Emicida. Na ocasião seguinte no programa 'Altas Horas', ele fez um analogia sobre o processo de embranquecimento no Brasil e a atual politica racista de extermínio do povo negro, camuflada no mito da 'Democracia racial'e da miscigenação pacifica.


Para quem não sabe, o rapper P.MC do grupo Jigaboo é arte-educador, o trabalho foi iniciado na época em que o cantor lançou a música 'Realidade' do álbum 'As aparências enganam' (1999), que se tornou uma espécie de hino para os que cumpriam medidas sócio-educativas na FEBEM (Nomenclatura da época). A música conta com a participação de jovens internos que relatam sua visão de dentro da fundação e protagonizam suas histórias através da letra.

Em 2004 P.MC e alguns jovens que foram ressocializados através do projeto, foram convidados para uma apresentação no programa"Caldeirão do Huck", onde puderam relatar suas vivências e mostrar o poder da arte e da cultura Hip Hop na transformação de vida dessas pessoas.


Criolo talvez seja o artista do Hip Hop mais cobiçado pela mídia atualmente, apesar de ter mais de 20 anos de carreira, somente de alguns anos para cá, tem tido algum reconhecimento. Talvez muito pela sua mescla de elementos da música brasileira associados ao Rap, principalmente depois do álbum 'Nó na orelha'. Contudo, Criolo é um poço de sensatez e militância. Apesar das suas músicas não carregarem um discurso tão ácido explicitamente, ele nunca deixou de propagar a cultura das ruas e também indicar outros grupos de Rap, entre eles Facção Central e Racionais Mcs que foram citados na sua participação no programa 'De frente com Gabi' no SBT.

Em uma aparição que ficou famosa, no programa do ator Lazaro Ramos no canal Brasil, Criolo fez um desabafo sobre a situação de vida do povo brasileiro. A rotulação de classes que recebemos, o descaso das autoridades e a corrupção ativa que destrói investimentos nas áreas da saúde e educação. 


Uma dupla que representou muito bem o Rap nacional na televisão, foi a Karol Konka e o Renan do grupo Inquérito. Os dois foram convidados para representar o movimento no 'Dia mundial do Hip Hop', e lá discursaram sobre suas carreiras e militância. Karol falou sobre a questão das mulheres no Hip Hop, sobre a imposição masculina e também sobre o empoderamento feminino. Já Renan mostrou seu talento com a poesia, falou sobre a importância do Hip Hop, além de discursar sobre questões sociais.



Muitos foram os rappers que foram em programas de televisão aberta para expressar suas opiniões e mostrar sua música. Facção Central já foi na RedeTV, a Família RZO na Bandeirantes, o Dexter no Altas Horas,  e até Edi Rock já foi na Rede Globo.

Analisando os casos citados acima, fica muito nítido a importância do discurso do Rap nacional nos meios de comunicação. A participação de artistas do Hip Hop, quando somada à discursos sérios, politizados, com engajamento social e sem censuras é um elemento fortíssimo no combate a marginalização da cultura, e também o afrontamento que temos que exercer para com as elites e as autoridades. Fazer a nossa cara e voz ser assistida e ouvida para que possamos mostrar nossa ideologia é necessário.

Não que o Rap precise da TV, longe disso. A cultura de rua sobreviveu anos a fio distante desse tipo de mídia, se propagando através das rádios comunitárias e oficiais que apoiavam o movimento, e também dos bailes e festas de Rap que arrastavam multidões. Sempre se fortalecendo e ganhando mais adeptos.  

Entretanto, uma coisa é verdade, A televisão não é lugar para o Rap.

Desde os tempos coloniais, nossos lugares sempre foram destinados as insalubridades, as senzalas, aos ambientes hostis, ao longínquo e aos infortúnios. Nunca fomos convidados para celebrações, conquistas, banquetes ou qualquer outro tipo de atmosfera festiva. Sempre que desejávamos adentrar em localidades que barravam a nossa presença, foi necessário ocupar e resistir. 

Nosso lugar não é na televisão, assim como também não é na faculdade de História, questionando as narrativas eurocêntricas, elitistas e belicosas, que apenas demonstram o ponto de vista dos vencedores, e nunca dos povos aniquilados pelos invasores. Nosso lugar não é no curso de Direito, entendendo as leis que foram construídas sobre bases burguesas, e que apenas servem para legitimar o poderio da elite sobre o capital e as propriedades. As casas legislativas, executivas e judiciarias não foram pensadas para abrigar cidadãos de baixa renda, que ao entrar no antro da 'democracia' vão conseguir entender o jogo politico maquiavélico que não visa o bem estar da população pobre, preta e periférica, só o seu extermínio. Para nos nunca foram destinadas as prateleiras da grandes livrarias, com produções literárias sobre a nossa história e vida.

Resumidamente, nosso lugar nunca foi ocupando altos cargos, protagonizando debates sérios, defendendo nossos pontos de vistas, habitando cadeiras universitárias, ou conquistando o que é nosso por direito. Tova vez que atravessamos os limites impostos à nós, foi na base da teimosia.

Estar na TV expondo nossa opinião, nossa arte, nossa resistência e ideologia, de maneira séria e coerente não é só questão de ascensão, é estar num lugar que nunca foi destinado à nossa presença como protagonistas.


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