A INFANTILIZAÇÃO DA CULTURA E O DESCONHECIMENTO DA HISTÓRIA

No final de 2018 surgiu a noticia de que um show de trap havia sido interrompido por um tiroteio. Logo após o incidente, foi apurado que o cantor Matuê e sua equipe teriam utilizado esse artificio para alavancar uma jogada de marketing para o seu próximo lançamento.

Talvez tenha passado do tempo de se falar do fato, já que vivemos sob a liquidez do Hype, mas mesmo assim, darei minha opinião.

Na data do acontecido vi várias pessoas criticando o cantor pela sua total irresponsabilidade em promover tal feito. Uma série de complicações poderiam ter ocorrido com os presentes no local por uma ganancia desenfreada em fomentar uma música futura. Já escrevi aqui no blog sobre como a efemeridade adentrou ao Hip Hop e as pessoas cada dia mais preocupam-se em lançar o hit da moda, a próxima pedrada, o som que falta e afins, e com isso  geram situações que deveriam ser melhor pensadas.



Uma das coisas mais extraordinárias no Hip Hop é o seu poder de transformação de caráter e amadurecimento para questões coletivas e sociais. Foi isso que me capturou e me fez enxergar na cultura um cais para essa turbulenta sociedade. É de se admirar que uma música como Homem na Estrada foi feita por um jovem de 23 anos na época, igualmente Brincando de Marionetes foi escrita por um jovem da mesma idade. A rapper Dina Dee quando escreveu Marcas da Adolescência ainda tinha seus 22 anos. E isso não foi uma exceção na década de 90. A maioria dos grupos, homens e mulheres tinham na casa dos seus 20 e poucos anos ou até menos, e sempre mostraram-se responsáveis e maduros pelas suas composições e pensamentos. Por isso, é errado colocar a culpa na idade, atenuando erros pela justificativa de ser novo ou nova demais e que ainda vai aprender. 

Tudo isso remonta ao meu ver em dois pontos centrais. A infantilização da cultura e o desconhecimento da história. Primeiro que ao contrário do que o Hip hop conseguia no passado que  era de amadurecer o jovem para a percepção de problemas sociais e coletivos, hoje a geração que abraçou o Rap parece cada vez menos preocupada com o seu meio e vive um narcisismo crônico, onde sua música é a melhor, deve ser a mais vista, ele é o mais foda, é o que gasta mais dinheiro e assim por diante. E nesse intuito de Hypar não mede atos ou consequências. 

Um outro fato que está ficando de lado é a busca pelo conhecimento e história. Antes estava contido nas letras que era preciso se informar, estudar, buscar instrução para vencer o sistema. Logicamente que podemos entrar na questão do discurso não aliado à pratica, e que nem todos que cantavam isso, também praticavam essa ação. Contudo, hoje vemos alguns que até se vangloriam de não estudar, de ter abandonado à escola, e que as aquisições materiais e pessoais valem mais do que a informação. Não é de se admirar que só no último ano tivemos apologia explicita ao estrupo em letra de Rap, revisionismo histórico em relação à escravidão e aos negros, rappers apoiando candidatos fascistas, e o famigerado rap de direita. 

Uma boa lida em um livro de história, uma pesquisa para saber o que é feminismo e o dialogo com as mulheres, um pouco de consciência de classe e por fim o conhecimento da origem da cultura Hip Hop evitariam essas e outras bizarrices.

Para finalizar, voltemos ao caso dos tiros fraudulentos no show. Somente alguém que desconhece inteiramente o histórico problemático do Rap com shows e violência para recorrer a tal jogada de marketing. Na década de 90 e começo dos anos 2000 os shows sempre foram marcados pelo clima de desconfiança em torno do espetáculo. Não eram raras as vezes em que apresentações eram embargadas pela policia, tinham tumultos generalizados, casa fechadas para o Hip Hop, jovens que morriam dentro das festas, e a imprensa deturpava a ideologia do Hip Hop em meio a esses caos. Para se ter uma ideia, na introdução do álbum Ao Vivo do grupo Racionais, o próprio Brown falava desse clima tenso. Nessa mesma linha a faixa Sangue, suor e lágrimas do Facção Central também relata o drama sofrido naquela época nos shows.

Quem não se lembra do show na Praça da Sé em São Paulo do Racionais que terminou em tumulto, e com a policia culpando o grupo por incitação à violência.




Outro show que teve uma repercussão bastante negativa foi em 2003, no Hip Hop Na Veia, evento muito conhecido. O show foi no Espaço das Américas na Barra Funda. Após uma confusão interna, um jovem acabou morrendo e as imediações do local foram depredadas. Na época vários veículos de imprensa noticiaram o caso atribuindo ao discurso do Rap a questão da violência.


A cultura Hip Hop sempre foi marginalizada pela sua origem preta e periférica. Sempre teve que lutar contra os estereótipos que padronizavam seus adeptos como bandidos, marginais, homens e mulheres violentos e desprovidos de civilidade. A história mostra o quanto foi difícil para o Rap nacional sair da zona do contraditório para estabelecer uma visão positiva por parte da sociedade. Felizmente hoje, temos milhares de pessoas que tiveram a sua formação baseada no Hip Hop e tornaram-se cidadãos de conduta exemplar, e isso não foram as faculdades e cursos que deram somente, mas sim a própria cultura das ruas. Com isso, entregar à própria sorte nossa história de luta na intenção de somar views e likes é de um mal caratismo gigante. 

Pessoas morreram por essa cultura, foram baleadas, tiveram seus corpos feridos, foram espancados pelas policia. Não tiveram a chance de lançar o seu próximo álbum em vida. Mães e pais ficavam apreensivos quando seus filhos iam para shows de Rap e não sabiam se iam voltar. Não podemos nunca esquecer disso.

Fingir tiros em um show de Rap traz muito mais significado do que marketing barato e promoção em rede social.

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